terça-feira, novembro 28

O Homem Sem Passado


Tres filandeses espancam brutalmente um homem com taco de Baseball. Recem-chegado de viagem, enquanto descansa em um banco de praca, roubam-lhe a mala. A vitima ergue o corpo sangrento a se arrastar para um banheiro de estacao ferroviaria para asseio, quando um homem o ve e chama ajuda. Ja no hospital, enfaixado feito mumia, os doutores o dao como morto, dado o disparo agudo do aparelho indicador das funcoes cerebrais tolhidas. Surpreendentemente ele sai do leito e volta para rua, cai perto a beira de um lago, dali levado por dois garotos para uma casa em uma especie de vila de deserdados entre containners. Dao amparo ate que este se restabelesca, mas ao ser indagado a respeito de sua origem ele de nada se lembra. Amnesico. A partir dai passa a contruir sua vida do zero, sem nome, sem identidade, corajosamente, tambem contando com a solidariedade da comunidade local. Ele aceita sua condicao, porem os jogos sociais o impedem em primeiro momento arrumar um emprego, abrir conta em banco, para nao ser preso.

"- A compaixao de Deus esta' no ceu. Aqui na Terra tem de se virar!"

Nu de lembrancas e trajando farrapos, aos poucos se estabelece noutro local, aluga um trailler, conquista amizades sem muito dialogo.
Procura o exercito de salvacao para nao morrer de fome, consegue roupas novas e ate uma namorada. Consertam uma Juke Box antiga, o que lhe permitiu ouvir Rock & roll e motivar a banda do exercito a mudar o repertorio de cancoes religiosas monotonas, para alegria da comunidade. Mais tarde, presente num banco no momento de um roubo, o homem sem nome e sem passado vai preso por nao possuir nenhuma identificacao. O delegado e o advogado discutem entre si os textos da lei, enquanto o protagonista fica fora do centro da discussao. Soltam-no. Essa logica do absurdo ensina o quanto somos coagidos por termos nossas relacoes mediadas por instancias burocraticas. Contudo ele prova que nao precisa se submeter a esses padroes equivocados e assume sua condicao.

"- Voce se importa de eu fumar? - Uma arvore por acaso se lamenta quando uma folha cai?"

Ao longo do filme, o personagem tem a possibilidade de reencontrar sua família, de redescobrir seu nome, mas opta por nao voltar a viver como vivia. Redescobre sua vida anterior insossa e desertificada, com um casamento mantido sem paixao. Brigava com a mulher e nao bebia, mas possuia o vicio do jogo, que o fez perder aposta, doando toda sua colecao de discos. Isto o deixou com um complexo de culpa tao forte que o fez perder a fala, disse a esposa no reencontro. Ele entao se divorcia do passado e regressa aos novos amigos, para uma existencia mais simples, porem digna. Em meio aos anonimos ha calor, existe ate a possibilidade de uma politica, pois esses sao os unicos que habitam a polis. Estes acabam achando os ladroes espancadores e se unem para expulsa-los do seu lugar. Os outros, aqueles com nome, habitam apenas o mofo de suas casas e reparticoes.

Eis portanto aqui um fiapo do sumo da tragicomedia filmada por
Aki Kaurismäki, premiado no Festival Cannes em 2002. Um drama repleto de humanidade e poesia, que me fez rir de chorar e chorar de rir este final de semana.

" - Fui a Lua ontem. - Viu alguem? - Nao, era domingo."

[O cinema de Kaurismaki e' a arte da presenca, de uma incarnacao bruta e imediata que lembra a evocacao do mudo. O silencio inexpressivo das suas personagens esconde a custo a sua sobre-presenca, a sua sobre-humanidade, eles que nao precisam de grandes trejeitos e agitacoes para provar que existem.]

Jean-Sebastien Chauvin, Cahiers du Cinema

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